Aquela senhora tem um piano
Autor: Alberto Caeiro on Monday, 19 November 2012
Escrito em 1-1-1930.
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Escrito em 1-1-1930.
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
J'étois inquiet distrait, réveur; jé dèsirois un bonheur dont je
n'avois pas l'ideé.
(Confessions de J.J. Rousseau)
--Sosinho no meu quarto retirado,--
Certas horas do dia calorosas,
Quando as flexas do Sol queimam as rosas,
Eu scismo no seu corpo esbelto e amado!
As curvas do seu collo assetinado,
Mais fino que o das rollas amorosas,
Dar-me-hiam as noutes voluptuosas
De que fallam os doutos do Peccado.
A mocidade foi-me um temporal bem triste,
Onde raro brilhou a luz d'um claro dia;
Tanta chuva caiu, que quase não existe
Uma flor no jardim da minha fantasia.
E agora, que alcancei o outono, alquebrantado,
Que paciente labor não preciso — ai de mim! —
Se quiser renovar o terreno encharcado,
Cheio de boqueirões, que é hoje o meu jardim!
E quem sabe se as flor's ideais que ora cubiço
Iriam encontrar no chão alagadiço
O preciso alimento ao seu desabrochar?
Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse um grande mal)
Torreão de gloria, o que é a phantasia,
Todo de lapis-lazzuli e coral!
N'aquellas redondezas, não havia
Quem se gabasse d'um dominio egual:
Oh o Torreão de gloria! parecia
O territorio d'um Senhor-feudal!
Um dia, não sei quando, nem sei d'onde;
Um vento secco de tortura e spleen
Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,
Naõ toques, minha Musa, não, não toques
Na sonorosa Lyra,
Que ás almas, como a minha, namoradas
Doces Canções inspira:
Assopra no clarim, que apenas sôa
Enche de assombro a terra;
Naquelle, a cujo som cantou Homero,
Cantou Virgilio a Guerra.
Busquemos, ó Musa,
Empreza maior;
Deixemos as ternas
Fadigas de Amor.
Se existe hum peito,
Que izento viva
Da chamma activa,
Que accende Amor.
Ah! não habite
Neste montado;
Fuja apressado
Do vil traidor.
Corra, que o Impio
Aqui se esconde:
Não sei aonde;
Mas sei o que vi.
Traz novas settas,
Arco robusto;
Tremi de susto;
Em vão fugi.
Eu vou mostrar-vos,
Tristes mortaes,
Quantos signaes
O Impio tem.
Oh! como he justo,
Que todo o humano
Hum tal tyranno
Conheça bem!
Em acordando agora,
O meu contentamento
É vêr em cada aurora
Um dia de tormento!
Podesse eu dar-te a prova
Dos dias que me esperam,
Lançando-me na cova
Onde elles te pozeram!
Lançassem-me algum dia
Ao pé, que de repente
O coração te havia
De ainda pular quente...
A face cobrar logo
A fórma e côr perdida,
E a bocca toda fogo
Ah! inspirar-me a vida!
Domingas, debalde queres,
Nesse canto da Cozinha,
Vencer a invencivel teima
Da rebelde carapinha;
Em vão te arripia a frente,
De que zomba o Deos de Amor,
Alvo côto de pomada,
Furtado do Toucador;
Debalde tufado laço
De atadeira fitta Ingleza
Te assombra a lêveda pôpa,
Rissada por natureza.
Debalde altêas as ancas,
Esguias, e enganadoras,
Co'as velhas algibeirinhas,
Que vão deixando as Senhoras,
Senhora, tambem hum dia
Entrarei co'a frente erguida;
Não serei na vossa meza
Dependente toda a vida;
Nem sempre abatido pejo
Dirá nesta cara feia
Quanto doe a hum peito altivo
Matar fome em caza alheia;
Airozo, gordo Perum,
He meu soberbo prezente;
Traz inda as pennas molhadas
Co'pranto da minha gente;
No Santo Dia esperavão,
Quebrando antigo jejum,
Cravar inexpertos dentes
Neste primeiro Perum;