N'UM BAIRRO MODERNO
Autor: Cesário Verde on Tuesday, 8 January 2013
Soffrer callada as suas proprias dôres
E chorar como suas as dos mais,
Tal a Rainha do seu nome, em flôres
Transforma pedras e em sorrisos ais.
A toda a parte leva o sol e amores,
É a _Saude dos Enfermos_ nos Cazaes;
E, no mar-alto, os velhos pescadores
Invocam-n'a entre espuma e temporaes!
Quem será ella, tão piedoza e dôce!
Com uns taes olhos que não tinha visto
Será a Virgem? Oxalá que fosse!
Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.
Suppõe que d'uma praia, rocha ou monte,
Com essa vista embaciada e turva
Que dá aos olhos entranhavel dôr;
Tinhas podido vêr transpôr a curva,
Pouco a pouco, do liquido horisonte,
A saudosa barca, que levasse
Aquelle, a quem primeiro uniste a face
E o teu primeiro amor!
Nenhum corpo mais lacteo e sem defeito
Mais roseo, esculptural e femenino,
Pode igualar-se ao seu, branco e divino
Immovel, nù, sobre o comprido leito!--
Nada te eguala! O ferro do assassino
Podia, hoje, matal-a, que o meu peito
Seria o esquife embalsamado e fino
D'aquelle corpo sem rival, perfeito.
Por isso é muito altiva e apetecida;--
E o goso sensual de a vêr vencida
Ha de ser forte, extranho e singular...
O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas — eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.