Hoje de manhã saí muito cedo
Autor: Alberto Caeiro on Monday, 10 December 2012
Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...
Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...
Cain no mundo errante, desterrado,
Fugindo á sua dôr cruenta e dura,
Morria sobre um valle, abandonado,
No sollo primitivo da Escriptura.--
O remorso--esse mal que não tem cura--
Não abatia o peito allucinado
Do que nasceu no seio do Peccado
Que herdou depois a géração futura.
Do Ceu sem mendigar luz nem consollo
Conservava inda erguido e altivo o collo;--
Mas nessa hora fatal que a todos vem...
Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de setim...
Teus dedos longos, de marfim,
Que os sombreassem joias pretas...
E tão febril e delicada
Que não podesses dar um passo -
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de côr no regaço...
Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas...
Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata -
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata...
Tu, sol! já não me alegras
Como alegravas, não:
Vós, sim, ó nuvens negras,
Relampago e trovão!
Quando o trovão me aterra,
Recordo-me de Deus;
Abalo cá da terra
E vou por esses céos:
E lá n'essas alturas,
Por onde só a fé,
Em regiões tão puras,
Nos deixa tomar pé;
Voar, pairar nos ares
Como uma aguia cá,
De lá só vejo os mares,
E é porque a luz lhes dá.
«Corre, vôa, borboleta, vae graciosa
Libar ondas de nectar delirante
A anémona cingir, o lyrio, a rosa
Com a aza fugitiva, coruscante.
«Vae soffrega d'amor e sê ditosa.
Dá-se no ceu um caso semelhante
Quando estrellas em noite vaporosa
Se abysmam n'uma queda extravagante.
«Vae mariposa, a chamma te fascina
Na aresta do ludibrio, como esphinge
Em deserto d'areia crystallina.»
I
O amor não se confrange,
O amor não se combate.
É como a luz do sol que tudo abrange,
É como um raio audaz que tudo abate:
É como em terra fecundante a flôr,
Viceja e medra, embora se não trate.
Não se confrange o amor,
O amor não se combate.
II
Ao Ângelo
Queria tanto saber por que sou Eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber por que seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!
Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!
A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!
Olhos suaves, que em suaves dias
Vi nos meus tantas vezes empregados;
Vista, que sobra esta alma despedias
Deleitosos farpões, no céu forjados:
Santuários de amor, luzes sombrias,
Olhos, olhos da cor de meus cuidados,
Que podeis inflamar as pedras frias,
Animar cadáveres mirrados:
Troquei-vos pelos ventos, pelos mares,
Cuja verde arrogância as nuvens toca,
Cuja hrrísona voz perturba os ares:
Ha muito que desceu das orientaes montanhas
A hydra singular que espalha nas ardencias
D'uma luta febril scintillações estranhas!
Ella galga, rugindo, ás grandes eminencias,
E emquanto vae soltando o silvo pelo espaço
Engrossa á luz do sol na seiva das consciencias.
Tem rijezas sem par, como de roscas d'aço
E corre descrevendo em giros caprichosos
Na leiva popular um indefinido traço.