Geral

A HYDRA

Ha muito que desceu das orientaes montanhas
A hydra singular que espalha nas ardencias
D'uma luta febril scintillações estranhas!

Ella galga, rugindo, ás grandes eminencias,
E emquanto vae soltando o silvo pelo espaço
Engrossa á luz do sol na seiva das consciencias.

Tem rijezas sem par, como de roscas d'aço
E corre descrevendo em giros caprichosos
Na leiva popular um indefinido traço.

A FELICIDADE.

Era bello esse tempo da vida,
Em que esta harpa falava de amores:
Era bello quando o estro accendiam
Em minha alma da guerra os terrores.

Nesse tempo o balouço das vagas
Me era grato, qual berço da infancia;
E o sibillo da bala harmonia
Semelhante á de flauta em distancia.

Eu corri pelos campos da gloria,
D'entre o sangue colhendo uma palma,
Para um dia a depor aos pés dessa
Que reinou largo tempo nesta alma.

O velho Olimpo dorme o bom somno comprido

O velho Olimpo dorme o bom somno comprido
Que prostra o lutador no fim d'uma batalha,
E os Deuses d'outro tempo, em livida mortalha,
Descançam no torpor d'um mundo corrompido.

No puro céo christão, de estrellas revestido,
No entanto ha muito já que chora e que trabalha,
Por nós, o Christo bom sem que seu Pae lhe valha,
A fim de ver, de todo, o mundo redimido!

Justiça, traça o manto alvissimo e estrellado
E senta-te, mulher, no throno abandonado
Pelos vultos gentis de tantos Deuses velhos!

SANTA SIMPLICIDADE

Na serena missão de paz que tu cumpriste
Ó suave Jesus, ó doce galileu,
Que santa singeleza e que perfume triste
Do teu casto perfil no mundo rescendeu!

Havia no teu verbo aquella unção divina
Que a velha harpa de Job soltou nas solidões,
E o bello, o puro sol da antiga Palestina
Suave contornou, de luz, tuas feições!

Compunham-te o cortejo uns pobres pescadores
Almas rectas e sãs; marchavas por teu pé,
E sorrias falando aos rudes e aos pastores,
Sentado nos portaes da pobre Nazareth.

Angulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar ôco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construido...

- Barcaças dos meus impetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segrêdo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...

- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...

*PALACIOS ANTIGOS*

A Anthero do Quental.

Bons castellos leaes nas rochas construidos,
Ás contorções do vento, á chuva ennegrecidos,
Que vamos admirar na angustia dos poentes;
Grandes sallas feudaes com tellas de parentes,
O que fazeis de pé, como entre os nevoeiros,
Os antigos heroes e as sombras dos guerreiros?!

A ***

    Pois se como sempre fomos
          Somos
    Pétalas da mesma flôr,
    E o que eu sinto, ou eu me illudo,
          Tudo
    Tambem sentes, gosto e dôr;

    Que te arraza os olhos d'agua?
          Magua
    Em que eu não deva tocar?
    Oh! mas se ha quem a suavise,
          Dize,
    Vou-lhe um suspiro levar.

*Febre Vermelha*

Rozas de vinho! Abri o calice avinhado!
Para que em vosso seio o labio meu se atole:
Beber até cair, bebedo, para o lado!
Quero beber, beber até o ultimo gole!

Rozas de sangue! Abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagae! deixae-as trasbordar!
As ondas como o oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ophelias de luar...

Camelias! Entreabri os labios de Eleonora!
Desabrochae, á lua, a ancia dos vossos calis!
Dá-me o teu genio, dá! ó tulipa de aurora!
E dá-me o teu veneno, ó rubra digitalis...

Aniversário de Álvaro de Campos

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Pages