Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Autor: Alberto Caeiro on Monday, 21 January 2013
Escrito em 4-3-1914.
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Escrito em 4-3-1914.
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Ó meus queridos! Ó meus S.tos limoeiros!
Ó bons e simples padroeiros!
Santos da minha muita devoção!
Padres choupos! ó castanheiros!
Basta de livros, basta de livreiros!
Sinto-me farto de civilisação!
Rezae por mim, ó minhas boas freiras
Rezae por mim escuras oliveiras
De Coimbra, em S.to Antonio de Olivaes:
Tornae-me simples como eu era d'antes,
Sol de Junho queima as minhas estantes
Poupa-me a _Biblia_, Anthero... e pouco mais!
No ar calado e bom da camara fechada,
Como um ninho d'amor, casto e silencioso,
Um grande cravo branco ergue o caule cheiroso,
N'uma jarra de jaspe, antiga e cinzelada.
Voam aromas bons no ar tranquillo e molle;
Algumas flores vão morrer nas jarras finas,
--Elle sereno vê, nas rendas das cortinas,
Silencioso morrer na sua gloria o Sol!
Todas morrem ao pé, só elle altivo é bello,
No seu vaso de jaspe, entre as demais existe,
--Como um rei infeliz n'um ultimo castello,
Com seu ar virginal e com seu modo triste!
Um choque de estrelas.
Uma explosão.
Ninguém ferido..
Oh! que harmonia!
Cadente s'esvoaça pela fresta
D'um visinho postigo!
(Hostia d'ouro)
Não sei que ha que me impelle
Para o teu escuro olhar!...
É mais branca a tua pelle,
Do que o linho de fiar!
É tua boca um botão,
E o teu riso a lua nova;--
Quem me dera ter na cova
Os _ais_ do teu coração!
Mal podes saber o gosto
Que tive da vez primeira
Que te avistei, ao sol posto,
Debaixo d'esta amoreira!
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
Ha raparigas n'este mundo,
Ha raparigas que são feias,
Mas nenhuma tanto como eu.
De mim tenho nojo profundo,
Ciumes do Sol, das luas cheias,
Que vão tão lindas pelo céo!
Nos arraiaes, nas romarias,
Adelaides, Joannas, Marias,
Todas tem par, mas menos eu.
Todas bailam, rindo e cantando,
E eu fico-me a olhal-as scismando
Na sorte que o Senhor me deu!
Eu confesso-me a ti, doce flor delicada!
Recolhida, modesta, e sol da singeleza,
Das vezes que atravez da verde natureza
Fiz soar com orgulho a bulha do meu nada!
Em vez de amar a vida humilde, chã, callada,
Do sabio estoico e são, exemplo d'inteireza,
Quantas vezes cuspi no Justo e na Belleza;
E cri-me o Fogo e a Luz da géração creada!
Orgulho! orgulho vão! Vaidade e mais vaidade!
Como disse o rei sabio e justo á claridade
Dos astros da Judea e ao gyro dos planetas!...