Como um grande borrão de fogo sujo
Autor: Alberto Caeiro on Saturday, 24 November 2012
Como um grande borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Como um grande borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Fecundarás a terra com o suor do teu rosto.
Cavae, eternamente, a velha terra!
Soffrei, suae, gemei na dura enxada,
Fecundae-a na paz ou pela guerra,
Quer seja pelo arado ou pella Espada,
Ó Homem! trabalhar é tua herança
Até que a Morte, emfim, grite--descança!
É a Arvore a tua companheira
O lar, a tenda, a sombra de teus passos,
Da tua amante a perfumada esteira,
Como bençãos t'estende os longos braços!
E ou seja em teu inverno, ou teu estio,
E teu berço, teu leito, e teu navio!
Quando vem Junho e deixo esta cidade,
Batina, _Caes_, tuberculozos céus,
Vou para o Seixo, para a minha herdade:
Adeus, cavaco e luar! choupos, adeus!
Tomo o regimen do Sr. Abbade,
E faço as pazes, elle o quer, com Deus.
No seu direito olhar vejo a bondade,
E ás capellinhas vou ver os judeus.
Que homem sem par! Ignora o que são dores!
Para elle uma ramada é o pallio verde,
Os cachos d'uvas são as suas flores!
Quando D. João baixou ao pélago sombrio,
E pagou a Caronte o óbulo supremo,
Um mendigo soez, de olhar sereno e frio,
Com pulso rijo e forte agarrou cada remo.
Mostrando os peitos nus, as túnicas rasgadas,
Criaturas feminis, convulsas, flagelantes,
Como um longo cordão de ovelhsa imoladas,
Seguiam atrás d'ele, em choro, soluçantes
Esganarelo, a rir, pediu lhe o seu dinheiro,
Ao passo que D. Luis, com a trêmula mão,
Mostrava, a toda a grei d'aquele cativeiro,
O filho que zombou das cans do ancião
Não ves aquelle velho respeitavel,
Que á moleta encostado,
Apenas mal se move, e mal se arrasta?
Oh quanto estrago não lhe fez o tempo?
O tempo arrebatado,
Que o mesmo bronze gasta.
Enrugárão-se as faces, e perdêrão
Seus olhos a viveza;
Voltou-se o seu cabello em branca neve:
Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo;
Nem tem huma belleza
Das bellezas que teve.
Pois se o homem, se anjo e nume,
Planta e flôr,
Dá seu canto, luz, perfume,
Crença e amor;
Pois se tudo sobre a terra
Que ame alguem,
Rosa ou espinho, quanto encerra
Dá, se o tem;
Se os carvalhos, nus, medonhos,
Veste abril;
Se inda a noite presta aos sonhos
Graças mil;
Se onde ha ramo, voz uma ave
Desprendeu;
Se onde ha folha, gotta suave
Cahe do céo;
Senhora, em honra do Dia,
Esforçando a mão pezada,
Tómo a Lyra, ha longo tempo
Ao silencio consagrada;
E em quanto lhe alimpo as cordas,
Que bolor aos dedos dão,
E atarantadas aranhas
Despejando o bêco vão;
C'os olhos ao ar alçados
A' minha Muza pedia
Me désse sonóros Versos,
Dignos de Apollo, e do Dia;
Que me ensinasse a louvar
O ditozo Nascimento,
Que ao vosso brilhante Séxo
Trouxe mais hum ornamento;
Taborda, altivo heroe da gargalhada,
Que dominas no palco com bravura,
Quando vier sobre ti a morte escura,
Hade sentir-se humilde, deslumbrada.
E rindo a vez primeira enthusiasmada,
Desfranzindo a medonha catadura,
Ao vêr-te e ouvir-te em alegria pura,
Despedaça a féra clava ensanguentada.
Como subjugas cauto a morte ingrata,
Vences tambem risonho a dúctil alma
D'esta multidão gélida, pacata.
Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram o
As minhas doces crenças de criança.
Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!
Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:
Tenho assaz conservado o rosto enxuto
Contra as iras do Fado omnipotente;
Assaz contigo, ó Sócrates, na mente,
À dor neguei das queixas o tributo.
Sinto engelhar-se da constância o fruto,
Cai no meu coração nova semente;
Já me não vale um ânimo inocente;
Gritos da Natureza, eu vos escuto!
Jazer mudo entre as garras da Amargura,
D'alma estóica aspirar à vã grandeza,
Quando orgulho não for, será loucura.