Geral

Passagem das Horas

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade

Continua a Tempestade

Aqui, sobre estas aguas cor de azeite,
Scismo em meu lar, na paz que lá havia:
Carlota, á noite, ia ver se eu dormia
E vinha, de manhã, trazer-me o leite...

Aqui, não tenho um unico deleite!
Talvez... baixando, em breve, á Agoa fria,
Sem um beijo, sem uma _Ave-Maria_,
Sem uma flor, sem o menor enfeite...

Ah! podesse eu voltar á minha infancia!
Lar adorado, em fumos, a distancia,
Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar...

BOAS NOITES

    Estava uma lavadeira
    A lavar n'uma ribeira,
    Quando chega um caçador.

    --Boas tardes, lavadeira!

    --Boas tardes, caçador!

    --Sumiu-se-me a perdigueira
    Alli n'aquella ladeira,
    Não me fazeis o favor
    De me dizer se a bréjeira
    Passou aqui a ribeira?

    --Olhai que d'essa maneira
    Até um dia, senhor,
    Perdereis a caçadeira,
    Que ainda é perda maior.

CARTA: _A huma Senhora, que em bons Versos pedio ao A. a Sátyra do Velho_.

Senhora, o Quadro pedido
Não estava retocado,
Mas brevemente o remetto,
Deixai isto ao meu cuidado;

Mostra os erros da velhice;
Põe alguns Velhos á raza;
Custou-me pouco a pintura,
Por ter as tintas de caza;

Que já hum Amigo o vio,
Eu, Senhora, vos confesso,
Porém mostrei-lho inda em calva
Como eu tambem lhe appareço

Vós sois de mais ceremonia,
E pezais com mais rigor;
Temi, que sem rir c'os Versos,
Só vos vissem rir do Author;

*Na floresta*

      Conversa nos abetos a bafagem,
      Nas franças range o vento compassado
      E á matilha esquivando-se um veado
      Pasma de vêr no bréjo a sua imagem.

      Que rumor tão subtil, que doce agrado,
      Poesia terna e perfida, selvagem,
      Em que os echos se arrastam na folhagem
      Entre doceis de musgo avelludado.

      Irrompem as gazellas nos aceiros
      E as cobras apparecem na giesta
      Quando as gralhas alagam os olmeiros.

A Taça

Uma taça cheia, bem lavrada,
Segurava e apertava nas mãos ambas,
Ávido sorvia do seu bordo doce vinho
Para, a um tempo, afogar mágoa e cuidado.

Entrou o Amor e achou-me sentado,
E sorriu discreto e sábio,
Como que lamentando o insensato:

«Amigo, eu conheço um vaso inda mais belo,
Digno de nele mergulhar a alma toda;
Que prometes, se eu to conceder
E to encher de outro néctar?»

E com que amizade ele cumpriu a palavra!
Pois ele, Lida, com suave vénia
Te concedeu a mim, há tanto desejoso.

APPELLO SUPREMO!

A minha alma immortal n'este exilio onde existe,
      Abrigando no seio a ideaes tão risonhos,
      E entre os homens só vendo um sarçal ermo e triste,
      Onde outro'ra plantára o jardim dos seus sonhos:

      Teve a sorte cruel d'uma flôr, que enganada
      Pelos raios do sol, ainda inverno e entreabrio;
      Mas que dias depois, co'o cahir da geada,
      E o soprar do nordeste, afinal, succumbio!...

Anseios

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!

Não estendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

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