As quatro canções que seguem
Autor: Alberto Caeiro on Wednesday, 21 November 2012
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
No tempo em que era a grande deusa viva
Os deuzes, os heroes e as Musas bellas,
Dizia uma aguia velha e pensativa,
Que fizera a viagem das estrellas:
--Vão-se indo as tradições! e hão-de ir com ellas
Apollo, Jove, Vichnou e Siva!
Um astro é grão de luz; o mar saliva
De ti ó grande Pan!... Só Pan tu vellas!...
Mas quando assim fallava a aguia, eis quando
Se ouviu aquella voz triste bradando
Na Sicilia: _Morreu o grande Pan_!
Os meus peccados, Anjo! os meus peccados!
Contar-t'os? Para que, se não têm fim...
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim!
A ti accendo cyrios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando soffro, me vejo com cuidados...
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!
Que eu seja puro d'alma e pensamento!
E que, em dia do grande julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:
Longos anos vivi sob um pórtico alto
De giganteos pilar's, nobres, dominadores,
Que a luz, vinda do mar, esmaltava de cores,
Tornando-o semelhante às grutas de basalto.
Chegavam até mim os ecos da harmonia
Do orfeão colossal das ondas chamejantes,
Ligando a sua voz às tintas deslumbrantes
Da luz crepuscular que em meus olhos fugia.
Em meio do esplendo do céu, do mar, dos lumes,
Foi-me dado gozar, voluptuosas calmas!
Escravos seminus, rescendendo perfumes,
A minha bella Marilia
Tem de seu hum bom thesouro,
Não he, doce Alceo, formado
Do buscado
Metal louro.
He feito de huns alvos dentes,
He feito de huns olhos bellos,
De humas faces graciosas,
De crespos, finos cabellos;
E de outras graças maiores,
Que a natureza lhe dêo:
Bens, que valem sobre a terra,
E que tem valor no Ceo.
Minha bella Marilia, tudo passa;
A sorte deste mundo he mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos Deoses
Sujeitos ao poder do impio Fado:
Apollo já fugio do Ceo brilhante,
Já foi Pastor de gado.
Oh! quantos riscos,
Marilia bella,
Não atropella
Quem cégo arrasta
Grilhões de Amor!
Hum peito forte,
De acordo falto,
Zomba do assalto
Do vil traidor.
O amante de Hero
Da luz guiado,
C'o peito ousado
Na escura noite
Rompia o mar,
Se o Helesponto
Se encapellava,
Ah! não deixava
De lhe ir fallar.
Thuribulo suspenso inda fluctuo,
Em quanto a alma em incenso restituo;
Mas, quando como fumo que se esvai,
Minha alma! vás teu rumo... sobe e vai.
Vai d'estas densas trevas, d'esta cruz,
Levar-lhe... quanto levas, pobre luz!
Amor, que em mim não cabe, vai depôr
Em Deus, e Deus bem sabe se era amor;
Se d'outra flôr o calix mais libei
Por esses quantos valles divaguei;
Se um nome em igneo traço li no céo,
Nas ondas e no espaço, mais que o seu...
Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!
Um beijo é culpa
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!
Um beijo é graça
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É innocente...
Vá!
Não me admira a mim que o sol, monarcha
De indisputavel throno, e throno eterno
Em céo e terra e mar;
Que em seu imperio o mundo inteiro abarca
Abaixe á pobre flôr seu dôce e terno,
Mavioso olhar.
Não me admira a mim que a crystallina,
Tão pura, onda do mar, que espelha a face
Do astro creador,
Que essas asperas rochas cava e mina,
Á praia toda languida se abrace
E toda amor!